Inquisição: saiba o que foi e se você iria parar na fogueira


A Inquisição, ou Tribunal do Santo Ofício, foi uma instituição judicial da Igreja Católica que existiu entre os séculos XIII e XIX. Em aliança com o Estado, o objetivo da Igreja era reprimir a heresia e fazer prevalecer a fé cristã.

Qualquer tipo de pensamento em matéria de fé que fosse contrário ao da Igreja era considerado uma heresia. A palavra grega hairetikis, que dá origem ao termo herege, significa “aquele que escolhe”. Assim, no longo período em que durou a Inquisição, fazer as próprias escolhas era uma atitude extremamente perigosa. Caso essas escolhas representassem uma ameaça ao poder da Igreja, a pessoa poderia ser perseguida, processada, torturada e condenada, inclusive, à morte.

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Prisão da Inquisição espanhola, com homens e mulheres sendo torturados. Autor desconhecido.

Felizmente, a Inquisição faz parte do passado, embora muitos dos “crimes” que levavam as pessoas à pena de morte ainda hoje motivem preconceitos raciais e discriminações religiosas.

Você já parou para pensar o que aconteceria com você caso uma máquina do tempo o levasse à França de 1233 ou à Espanha de 1481? Dá arrepios só de pensar, não é mesmo? Com base nesta lista de heresias, descubra se você seria alvo da repressão da Igreja e se iria ou não parar na fogueira.

Você discorda da Igreja Católica e de seus dogmas?

Dogmas são as chamadas “verdades reveladas” e pronunciadas pela Igreja. Eles preservam em si a verdade da fé. A existência de Deus, por exemplo, é um dogma. Duvidar da Sua existência, portanto, uma heresia.

Você discorda da Igreja Católica? Você duvida da existência de Deus ou acredita na existência de vários deuses? Mesmo católico, você discorda de práticas ou crenças da Igreja? Se sim, cuidado! Caso a máquina do tempo lhe envie justamente para a França medieval durante o pontificado de Gregório IX, certamente você terá sérios problemas.

Foi o papa Gregório IX quem criou o Tribunal do Santo Ofício, em 1233, e deu ordem para que bispos nomeassem inquisidores para atuar em regiões “contaminadas” pela heresia.

E quais eram as heresias nessa época? Uma das principais era a cátara, conjunto de seitas surgidas na Idade Média que provocaram enorme perturbação política, social e religiosa. Os cátaros opunham-se ao clero e eram contrários ao pagamento do dízimo. Consideravam-se os “verdadeiros” cristãos (katharós, em grego, significa “puro”). Uma das maiores heresias cátaras era a negação dos sacramentos católicos.

Por ameaçarem o poder da Igreja foram duramente combatidos pela Inquisição. Em 1239, 200 cátaros foram mortos de uma só vez no norte da França, num dos maiores massacres promovidos contra esses grupos religiosos. Com o aumento das perseguições, as seitas cátaras foram praticamente extintas no final do século XIII.

Outro caso famoso da Inquisição medieval é o da Ordem dos Cavaleiros Templários. Fundada no século XII, esta ordem militar unia fé e armas em defesa do cristianismo e de Jerusalém, recém-conquistada durante as Cruzadas. Ao longo do tempo, os Templários se tornaram poderosos, o que incomodou nobres e reis. Filipe IV, rei da França, determinou o confisco de seus bens (detalhe: Filipe IV tinha dívidas com os Templários). A Igreja, por meio do papa Clemente V, também se lançou contra eles, acusando-os de hereges. A ordem foi extinta em 1312 e as lideranças (como o grão-mestre Jacques de Molay) condenadas à fogueira.

Para saber mais sobre os Templários, leia: Os Templários: quem eram, o que fizeram e como acabaram.

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Gravura de M. Robert Fleury retrata o momento em que hereges são punidos com a pena capital.

Você não é católico?

Você é espírita, evangélico, umbandista, judeu? Melhor não arriscar pegar a máquina do tempo. Vai que o seu destino é a Espanha de 1480?

Além das seitas cátaras, outros grupos religiosos eram alvos de perseguição por parte do Tribunal do Santo Ofício. Na chamada Inquisição moderna, criada no século XV, religiões como o judaísmo e o protestantismo, por exemplo, eram considerados crimes graves contra a fé.

Mas os maiores alvos da Inquisição moderna, sem dúvida alguma, foram os judeus. Aliás, a maior diferença entre as Inquisições moderna da medieval é a questão judaica. O combate ao judaísmo na Península Ibérica foi tão cruel que se pode compará-lo à perseguição promovida pelo nazismo no século XX. Essa política racista promoveu um massacre tanto em Portugal quanto na Espanha, e não poupou nem os judeus convertidos ao catolicismo, os chamados “cristãos-novos”.

Na Espanha, duas opções foram dadas aos judeus: ou eles saíam do país ou se convertiam ao catolicismo. Porém, aos olhos dos inquisidores, nem o batismo foi suficiente para limpar o pecado de origem. Só entre os anos de 1481 e 1488, mais de 700 “cristãos-novos” foram condenados à fogueira na Espanha. O mesmo destino tiveram muitos muçulmanos recém-convertidos ao catolicismo.

Você acredita em simpatias ou no poder mágico de plantas e poções?

Acredita em amarrações? Já escreveu no nome da pessoa amada três vezes na sola do pé esquerdo? Tem o hábito de deixar uma porção de sal grosso na entrada de casa para espantar a inveja e o mau olhado? Então cuidado. É melhor nem entrar na nossa máquina do tempo. Você pode ser acusado de feitiçaria.

A crença em poderes mágicos contrariava a fé em Deus e representava uma ameaça à unidade do catolicismo. Consideradas idolatrias ou superstições, todas as práticas mágicas ou religiosas que se desviassem da ortodoxia deviam ser combatidas. Recorrer a forças misteriosas, poções mágicas ou ervas milagrosas poderia provocar desconfiança nos inquisidores.

No Brasil, onde a Inquisição também atuou durante o período colonial, 294 pessoas foram denunciadas por feitiçaria em Minas Gerais, entre os anos de 1700 e 1820. Agentes inquisitoriais (ou visitadores) eram enviados ao Brasil para investigar possíveis hereges. Caso se confirmasse a heresia, essas pessoas eram presas e enviadas a Lisboa.

Você é mulher? É feminista?

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Ilustração de mulher acusada de bruxaria sendo torturada por inquisidores. Autor desconhecido.

A crença na existência de bruxas dominou a Europa entre os séculos XIII e XVII e provocou o assassinato de muitas mulheres durante a Inquisição. Também nas antigas colônias, como México, Peru e Brasil existiu a chamada "caça às bruxas".

As bruxas normalmente eram mulheres camponesas que dominavam o uso de plantas medicinais e detinham certo poder nas comunidades onde viviam. Eram conhecidas e respeitadas como curandeiras e, por isso, gozavam de prestígio social. Numa sociedade extremamente machista, suspeitava-se de mulheres poderosas.

Mulheres muito bonitas e sedutoras, que despertavam desejos proibidos em padres, celibatários ou homens casados, também eram possíveis bruxas.

A lista de “crimes” é extensa e nos faz pensar que as mulheres rotuladas como bruxas não eram somente as benzedeiras. Toda mulher que se afirmava livre era considerada uma ameaça ao poder patriarcal e religioso.

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Você já teve dois (duas) namorados (as) ao mesmo tempo? Já traiu?

A bigamia e o adultério, considerados crimes contra a moral e os costumes católicos, eram passíveis de punição. Um dos dogmas da Igreja Católica é o matrimônio, encarado como sacramento bendito por Deus e restaurado por Cristo.

De acordo com os historiadores Maria Resende e Rafael Sousa, 60 bígamos foram denunciados em Minas Gerais entre 1700 e 1820.

Você é homossexual ou bissexual?

LGBT

A chamada sodomia também era visada pelo Tribunal do Santo Ofício. O período de maior perseguição foi durante o reinado de Dom Fernando e Dona Isabel, casal que uniu os reinos ibéricos de Aragão e Castela no final do século XV. A homossexualidade, durante o reinado dos Reis Católicos, era vista como um crime de lesa-majestade (que fere diretamente a pessoa do rei), além de ser contra a natureza. Punição ao chamado "pecado nefando" era a fogueira.

Você dá valor à ciência? Aprecia a liberdade de expressão?

Galileu Galilei
Galileu frente ao Tribunal da Inquisição, de Cristiano Banti.

O julgamento de Galileu Galilei (1564-1642), famoso físico e astrônomo italiano, talvez seja um dos melhores exemplos da luta contra a ciência promovida pela Inquisição. Por defender a teoria copernicana de que a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário, teve de comparecer perante o tribunal da Igreja. Não chegou a ser torturado, mas o ameaçaram. Só fugiu da pena de morte por renunciar publicamente à herética teoria. Foi preso, mas logo depois absolvido pelo Papa Urbano.

Houve muita censura literária durante a Inquisição. Um decreto do Concílio de Latrão, em 1517, determinou que todo livro escrito devia ser submetido à censura de um bispo da Igreja antes de ser impresso. Em 1543, criou-se uma lista de livros proibidos, constantemente atualizada, chamada Index librorum prohibitorum. De acordo com a pesquisadora brasileira especialista no assunto, Anita Novinsky, livros sobre feitiçaria ou temas que de alguma forma ferissem dogmas ou a moral cristã eram considerados heréticos e estavam sujeitos à censura parcial ou total. Em Portugal, textos de Camões e Gil Vicente foram alvos da censura inquisitorial.

O passo a passo da Inquisição: da denúncia à execução da pena

Na Inquisição, tudo começava com a denúncia. Qualquer pessoa era um denunciante potencial. Na Idade Média, uma ordem do papa Gregório IX garantia o sigilo absoluto do delator. Uma leve suspeita ou um boato já era suficiente para que um oficial da Inquisição, acompanhado por agentes, fosse deslocado à casa do suspeito para detê-lo. Um fato importante e pouco mencionado: muita gente se aproveitava da situação para se vingar dos desafetos, denunciando-os aos inquisidores.

Também podia acontecer do inquisidor visitar uma vila ou cidade onde houvesse alguma suspeita de heresia. As pessoas eram convocadas à igreja. Durante o sermão, o inquisidor fazia uma lista das heresias e incentivava os fiéis a se arrependerem e denunciarem práticas suspeitas.

Uma vez detido, o suspeito era submetido a interrogatório. E esses interrogatórios costumavam ser lentos. O objetivo principal era o de levar o suspeito a confessar seu crime e, por fim, arrepender-se. Também se esperava que o interrogado denunciasse cúmplices ou hereges próximos, como amigos e familiares.

Mas, no caso da pessoa não se mostrar disposta a se reconciliar com a Igreja, existia a tortura. Essa prática foi oficialmente autorizada na Itália em 1252 e logo se espalhou por toda a Europa.

Alguns métodos de tortura usados na Inquisição

Métodos de tortura da inquisição

  • Deixar o acusado numa cela, sem comida nem bebida, durante um longo período de tempo;
  • Fazer cortes na sola dos pés e depois esquentá-los com brasa;
  • Amarrar o suspeito, enfiar um pedaço de pano em sua boca e asfixiá-lo com água;
  • Amarrar as pernas e os braços da pessoa numa cama e, com o auxílio de um arrocho (pedaço de pau para apertar cordas), provocar cortes profundos na carne. Esse método extremamente cruel de tortura era conhecido como "potro";
  • Amarrar o acusado pelas mãos e, com o auxílio de uma roldana, suspendê-lo por uma corda até determinada altura. Atava-se um peso aos seus pés. Num dado momento, produzia-se a queda, mas sem que o torturado tocasse o chão. Esse método era conhecido como "polé".

As sentenças variavam de acordo com a gravidade do delito e de sua duração. Havia penas leves, como as penitências espirituais ou pecuniárias. Mas também penas muito duras, como a prisão, o exílio e a condenação à morte. Um tipo de pena extremamente humilhante era o "sambenito", uma roupa especial (ou hábito penitencial) com a razão da condenação que a pessoa era obrigada a usar até o final da condenação.

As sentenças eram lidas em cerimônias grandiosas e anuais chamadas de autos-de-fé. Normalmente, essas cerimônias eram feitas em praças públicas, aos olhos de todos da comunidade, e contavam com a presença de autoridades civis e religiosas. Após a leitura das sentenças, os condenados à morte eram levados à fogueira.

auto-de-fé
Pintura de Francisco Rizi retrata um auto-de-fé na Plaza Mayor de Madrid, em 1680.

Quantas pessoas foram mortas pela Inquisição?

Há muita polêmica e imprecisão em relação aos números de condenados e mortos pela Inquisição. Alguns falam em "milhões", somando-se as inquisições medieval e moderna. Mas é muito difícil saber ao certo o número de pessoas mortas, sobretudo na Idade Média.

Segundo dados reunidos por Anita Novinsky, durante a Inquisição moderna estima-se que quase 30 mil pessoas tenham sido condenadas em Portugal, sendo que destas quase duas mil foram queimadas vivas. Na Espanha, entre 1480 e 1808, quase 32 mil hereges foram levados à fogueira.

Após séculos de perseguição, torturas e assassinatos, a Inquisição foi extinta no início do século XIX. Não faz tanto tempo assim. Num esforço político de adaptação da sociedade portuguesa aos novos tempos, marcados pelo avanço do liberalismo e o enfraquecimento da Igreja, a Inquisição em Portugal foi oficialmente abolida em 1821. Na Espanha, foi eliminada por José Bonaparte em 1808; restaurada por Fernando VII em 1814, só foi extinta em 1834.

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